domingo, 17 de janeiro de 2010
Do desígnio espiritual do limpador de rodinha de carrinho de supermercado
Quero logo corrigir um problema que possa surgir devido a figura de linguagem delicada que utilizei. Não me refiro necessariamente a gostar de Shakespeare, música clássica ou, sei lá, bocha. Bom, bocha parece-me refinadíssimo; a você não? Velhinhos de boina e meia até os joelhos e tal. Voltando ao ponto: boxe, dar porrada nos outros, why not? Pode muito bem ser um desses instrumentos humanos do destino. O fato é que as pessoas em volta realmente notam quando alguém parece estar fazendo exatamente aquilo que nasceu para fazer. A história e, claro, o cinema, estão cheios desses personagens; para citar rapidamente um presente em ambos: Howard Hughes, de O Aviador.
De imediato não é possível perceber nada de alto, sublime, em uma paixão pela aviação. Como isso torna Hughes uma pessoa especial? No que isso o diferencia de todas as outras pessoas que têm paixão pelo sentimento de romper os desígnios terrestres humanos? A resposta está na intensidade dos sentimentos que o personagem dedica ao hobby, o modo como põe sua vida inteira como uma busca pessoal, esta é a chave, em torno do progresso da aviação. Hughes parece estar ali fazendo exatamente aquilo que era a ele suposto fazer; a aviação não é para ele matéria qualquer, é assunto mortalmente sério, capaz de fazê-lo sofrer à loucura. E as pessoas percebem isso, identificam-se, admiram e desejam profundamente um objeto de tamanho valor pessoal, um destino ao qual se dedicar. Creio ser esta a explicação da admiração que se tem por personagens como Hughes, ou, voltando ao boxe, Rocky Balboa.
O ponto que toca a idéia inicial, “mais importante do que a busca por gostos refinados, é a busca por afinar os gostos profundos e já consolidados”, é justamente essa admiração humana pelo modo especial como certas pessoas executam até as tarefas mais banais. Um limpador de rodinha de carrinho de supermercado, creio mesmo, pode executar sua tarefa com tamanho empenho que a coisa nos cause a admiração de um profundo desígnio espiritual.
quinta-feira, 14 de janeiro de 2010
Invertendo Ícaro
O mundo não vai (e, digo mais, nem devia) parar para admirar-se das tuas angústias e sofrimentos pessoais.
Do alto de um despenhadeiro - cujos limites definem o terreno por onde um aldeão passa seu arado, e cuja escarpa desemboca na praia onde um pastor, apoiado preguiçosamente em seu bordão, fita os céus - vemos um longo mar, iluminado ao sol nascente, repleto de embarcações que seguem céleres e despreocupadas em direção à cidade portuária que se vê ao fundo. Esta bucólica paisagem seria apenas isto mesmo, uma paisagem, não fossem as curiosas pernas de Ícaro, quase impercepitíveis em meio à cena cotidiana, debatendo-se no mar. Ícaro cai dos céus, mas o mundo, continua sem notar.
Que a obra de Brueghel fala da indiferença do mundo aos fracassos e sofrimento pessoais, isto é difícil de negar. O cômico é que me peguei pensando que se a obra representasse Ícaro na situação diametralmente oposta, muito pouco da mensagem seria perdida. Houvesse no quadro um Ícaro voando aos céus e finalmente pousando no sol, não imagino que a cena bucólica fosse muito diferente.
Resumindo, o mundo também está cagando para o sucesso pessoal.
E, pensando cá comigo. Não é que os chatos que insistem em querer que o mundo pare para admirar-se de seus coraçõezinhos sangrentos de dor, são os mesmíssimos que parecem considerar o próprio sofrimento como um forma de sucesso pessoal?