“Como debaixo dos pés de cada geração que passa na terra dormem as cinzas de muitas gerações que a precederam, assim debaixo dos fundamentos de cada cidade grande e populosa das velhas nações da Europa jazem alastrados os ossos da cidade que precedeu a que existe. Como de paes a filhos as diversas gerações se continuam e entretecem sem divisão, semelhantes à túnica inconsutil do Christo, assim a cidade antiga se transmuda imprerceptivelmente na nova cidade; e como o octogenario, na vizinhança do túmulo, não vê à roda de si, nem pae, nem irmãos, nem amigos da infancia, mas filhos, mas netos, mas existencias todas virentes, todas cheias de vida, e sente com amargura que o seu século já repousa em paz e espera por elle que tarda, assim o último edificio da cidade que passou, quando pendido ameaça desabar, olhando à roda de si não vê nenhum daquelles que, ahi perto, campeavam senhoris e formosos no tempo em que elle tambem o era.”Com um arrepio na espinha fechei o livro e dediquei-lhe em reverência um longo minuto de silêncio. Pelos sonhos de Alexandre Herculano me é possível ser dirigido através deste livro e, sob o olhar terno e exigente de seu tomo que ameaça desabar, sinto o peso dos olhares de muitas gerações a mim anteriores. O livro, agora sobre a estante, continua a me encarar, enquanto isso eu tento encontrar em mim, em algum ponto nebuloso, uma certa virtude especial com a qual me devo dedicar a sua leitura, em suma, uma nova abordagem sobre tudo quanto tentei praticar até hoje como atividade intelectual.
Por enquanto, como um moleque culpado, desvio o olhos como posso.
PS.: Quase um mês depois, quando acreditava assentado o espanto relatado acima: abro novamente o livro. Dessa vez para lê-lo por completo, mas mal termino o primeiro parágrafo do prefácio e meus olhos já estão inquietos, como que querendo verter lágrimas de admiração pelas impressões relatadas na magistral prosa de Alexandre Herculano.
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