quinta-feira, 20 de agosto de 2009

Um Livro Antigo

Comprei-o há dois dias. A capa em tecido rosado e machucado conta bem a idade da peça que, editada em Portugal há um século e seis anos idos, atravessou mãos e um oceano até sorrir-me aqui nesta ilha, da qual contam antigas grandezas intelectuais e me parece nada senão uma província confortável mas erma aos espíritos, que é a terra de São Luís. Nas páginas, que de sua cor de chá preto exalam o charme de um século, leio a delicada assinatura de um de seus antigos donos: “Tancredo Mattos”, traçada à bico de pena com a precisão e graça das caligrafias antigas; sei então o nome do homem, agora espírito, que através de poucas e nada intrusivas notas de leitura irá acompanhar-me ao longo do livro. Como numa ironia sútil que ao homem não é dado perceber a não ser pelo desenrolar dos séculos que dele se riem, as primeiras palavras do livro reproduzem a própria situação do velho tomo que resgatei em meio a seus companheiros de estante cem anos mais novos:
“Como debaixo dos pés de cada geração que passa na terra dormem as cinzas de muitas gerações que a precederam, assim debaixo dos fundamentos de cada cidade grande e populosa das velhas nações da Europa jazem alastrados os ossos da cidade que precedeu a que existe. Como de paes a filhos as diversas gerações se continuam e entretecem sem divisão, semelhantes à túnica inconsutil do Christo, assim a cidade antiga se transmuda imprerceptivelmente na nova cidade; e como o octogenario, na vizinhança do túmulo, não vê à roda de si, nem pae, nem irmãos, nem amigos da infancia, mas filhos, mas netos, mas existencias todas virentes, todas cheias de vida, e sente com amargura que o seu século já repousa em paz e espera por elle que tarda, assim o último edificio da cidade que passou, quando pendido ameaça desabar, olhando à roda de si não vê nenhum daquelles que, ahi perto, campeavam senhoris e formosos no tempo em que elle tambem o era.”
Com um arrepio na espinha fechei o livro e dediquei-lhe em reverência um longo minuto de silêncio. Pelos sonhos de Alexandre Herculano me é possível ser dirigido através deste livro e, sob o olhar terno e exigente de seu tomo que ameaça desabar, sinto o peso dos olhares de muitas gerações a mim anteriores. O livro, agora sobre a estante, continua a me encarar, enquanto isso eu tento encontrar em mim, em algum ponto nebuloso, uma certa virtude especial com a qual me devo dedicar a sua leitura, em suma, uma nova abordagem sobre tudo quanto tentei praticar até hoje como atividade intelectual.

Por enquanto, como um moleque culpado, desvio o olhos como posso.

PS.: Quase um mês depois, quando acreditava assentado o espanto relatado acima: abro novamente o livro. Dessa vez para lê-lo por completo, mas mal termino o primeiro parágrafo do prefácio e meus olhos já estão inquietos, como que querendo verter lágrimas de admiração pelas impressões relatadas na magistral prosa de Alexandre Herculano.